19.10.06

Chavões no Debate sobre Aborto

" Eu tenho dois filhos, fiz quatro abortos. Se não os tivesse feito, hoje tinha seis filhos. E não tenho remorsos nenhuns porque preferi dar a educação e as condições que podia aos dois. E vou votar sim, porque sei, porque vi, como as mulheres são maltratadas quando fazem abortos, em Portugal. "
- Testemunho que fechou o Fórum TSF desta manhã.

O debate teve os cromos do costume, os argumentos batidos de sempre, como se pode ver aqui e aqui.

A argumentação anti-escolha tende a cair nestas linhas:

- Que é vida, que é um bebé, que há estudos que comprovam que já se sente o coração.
A este argumento pedagogo e manipulador, nem é preciso perguntar “que estudos, e feitos por quem, e em que termos”, pois da mesmo forma também existem estudos que não o comprovam. Basta lembrarmo-nos das aulas de biologia e de que como nos ensinaram a diferença entre um feto e um embrião, de nos lembrarmos que a gestação humana leva 9 meses.

- Que o aborto é um crime e está-se a matar uma criança.
Desconhecia que o feto tivesse personalidade jurídica, embora alguns beatos radicais ainda tenham pensado nisso.

Estes chavões dos movimentos contra a despenalização do aborto fogem sempre ao verdadeiro cerne da questão.

O discurso argumentativo dos movimentos anti-escolha fala sempre como se a mulher fosse culpada por engravidar, e por isso, dizem eles, há que pensar em formas de ajudar as mulheres a terem os seus filhos, porque há associações, há apoios e tem que se lutar para que existam ainda mais estruturas de apoio. Não se desvaloriza que essas estruturas não sejam importantes, mas o que não é admissível é que a mulher ainda seja julgada, avaliada, criticada por decidir não ter filhos. Como se a realização feminina passasse por “ser mãe”. Este tipo de discurso é salazarento, escuro e cinzento, que não se pode fazer parte de uma sociedade democrática e de um Estado laico. A maternidade e paternidade responsável passam por escolher o momento em que se quer ter filhos, ou pela escolha de não os ter.

Da mesma forma, a mulher também é criticada por recorrer ao aborto clandestino. Porque não foi responsável, não teve cuidado. Portanto, tem que pagar por isso. Neste quadro a figura masculina desaparece sempre. Como se um filho se fizesse sozinho. Como se as medidas contraceptivas não dissessem respeito aos dois pares, no acto sexual. E a partir daqui entra-se naquele discurso interminável de que hoje em dia há informação, que só engravida quem quer, que até há pílulas do dia seguinte, e um rol discursivo que cai sempre no mesmo, na culpabilização da mulher por ter engravidado.

E daqui chovem inúmeras respostas, que não é por aí, até porque apesar da informação a educação sexual ainda está ausente das escolas, porque apesar da informação nem sempre se tomam as medidas contraceptivas, e que ainda há muita gente que não está informada. Todos estes três aspectos são válidos, mas já me cansa ter que estar sempre a repeti-los, porque a questão é sempre a mesma, é recair no que deveria ter sido feito e no que não foi feito, e olha, agora pagas o erro.

Mas “reparar o erro” tem que ser sinónimo de prosseguir a gravidez? E uma gravidez não desejada e levada em diante é ser responsável? É sinónimo de que vou ser uma boa mãe? (como se o instinto maternal fosse surgir a qualquer momento)

Esta coisa de “cobrar o erro” é incoerente e não nos vamos iludir, o que está subjacente nesta culpabilização é sempre o maldito patriarcado, a maldita e retrógrada lógica de que uma mulher não é verdadeiramente uma mulher sem ter filhos, sem ter uma família. Os tempos mudaram, e felizmente, Salazar caiu da cadeira. O que infelizmente ainda não caiu foi esta mentalidade cinzenta e mesquinha. Sim, porque a mesma lógica está, por exemplo, na recente proposta de lei do Governo no acesso à procriação medicamente assistida. A inseminação artificial não é apenas vedada às uniões homossexuais. Não, ela é igualmente negada a mulheres solteiras. O mesmo encontramos no Orçamento de Estado para 2007. Os solteir@s passam a ser penalizados fiscalmente. Portanto, apesar de termos um Governo que diz estar empenhado na despenalização do aborto, porque tem que se acabar com a vergonha de criminalizar as mulheres, por outro, esse mesmo Governo reforça a ideia de que a família, com um pai e uma mãe, com filhos, de preferência um casal, o João e a Joana, é ainda a instituição modelo, a instituição que faz sentido.

Independentemente das nossas diferenças e dos nossos valores, o que tem que existir é a escolha, um direito a escolher se queremos ou não ser mães ou pais. O Estado e a sociedade não podem criticar uma mulher por ela não querer ter filhos. Porque isso é uma escolha. E é ainda mais hipócrita ao proibir o aborto, quando o aborto clandestino não deixa de existir, quando existem milhares de casos de maus tratos infantis, de abandono familiar e famílias disfuncionais. Pois se o aborto fosse uma escolha, seguro e legal, talvez alguma parte desses casos desaparecessem.

- Mais logo, debate a acompanhar na Assembleia da República, concentração a partir das 14.30. Debate inicia-se às 15.

1 comentário:

Anónimo disse...

Miriam disse...
Excelente texto! Já agora gostava de saber qual a vossa opinião, se concordam com o referendo.
Um abraço e bom trabalho!
20/10/06 13:22

Bandida disse...
Um referendo quando cada uma sabe de si?!...Bahhhhhhhhhhh

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Sou a favor da liberalização do aborto, sem referendos!
22/10/06 23:26

Barriguita disse...
Miriam, no Colectivo as opiniões podem ser diferentes, todas vão no sentido da despenalização, a passar ou não pelo referendo.
Deixo aqui a minha, que escrevi o post. Na minha opinião a lei deveria ser mudada e pronto. Mas já percebemos que o actual Governo não está com qualquer predisposição política para o fazer, quando pela 1ª vez na nossa história, teriamos essas as condições, com a actual maioria de esquerda. No entanto, e uma vez que o referendo é a única arma que dispomos, obviamente que considero que não podemos ficar de mãos atadas e devemos fazer campanha pelo sim, para que esta vergonha acabe de uma vez por todas.
23/10/06 00:43

Anónimo disse...
Apenas um reparo: não é a 1ª vez na história que é possível despenalizar logo na AR, no governo do guterres já havia uma maioria de esquerda. Aliás, a lei até chegou a estar em discussão na AR, mas o pobre beato foi apertado pelo seu confessor Milícias e voltou atrás
23/10/06 05:03