«O desejo feminino sobrevive à mutilação sexual em 'Dunia'
Jocelyne Saab, realizadora libanesa (Beirute, 1948) radicada em Paris, estará hoje em Lisboa, no Instituto Franco-Português, a apresentar Dunia (19.00). Rodado no Cairo, o filme aborda a excisão e só a marcação da estreia egípcia, em Novembro, já provoca polémica, diz a autora ao DN, ao telefone. Fala até de "excisão intelectual" daquela sociedade.
Em Dunia, a protagonista (Hanan El Turk), vítima de excisão, não é uma africana nos confins do Sudão ou da Guiné ou uma senegalesa imigrada em França. É, sim, uma jovem urbana, filha duma famosa bailarina, universitária que mora sozinha num apartamento do Cairo, faz uma tese em letras e segue aulas de dança: sensual dança dum ventre com cicatriz da ablação do clitóris... No Egipto, 97 % da população feminina é excisada, segundo a Amnistia Internacional. Por isso, Jocelyne Saab quis radicar ali o seu filme.
"O desejo feminino foi o assunto de que quis falar" em Dunia, especifica a realizadora, que, aliás, contextualiza a mutilação sexual feminina, situa a condição da mulher e o relacionamento homem-mulher. Situa ainda a excisão em território feminino, "numa espécie de matriarcado, com os homens em silêncio". Realizadora duma vintena de documentários, partiu para esta ficção "dum inquérito sobre jovens e sexualidade, no Egipto, para uma série documental". Em breve concluiu que o ambiente tornava "impossível continuar, era demasiado perigoso e, frustrada", voltou para Paris. "Mas, numa das imagens registadas, havia a mulher jovem com a cabeça entre as mãos, que tentava compreender o que lhe acontecera", lembra, remetendo para imagem do filme. Este equivale a uma busca de resposta à pergunta: "Como poderá esta jovem viver como uma rapariga moderna e reencontrar o prazer?"
A matéria veio ao encontro dum "antigo desejo de falar do corpo velado/roubado" (em francês, voilé/volé). Diz que "as mulheres são muito sensuais e os clichés da oriental sofredora sob o patriarcado falseiam a realidade, mais complexa". Que "quis tratar, não da forma ocidental, frontal, que exacerba as coisas e enerva as pessoas, mas duma forma mais suave".
Crê tê-la encontrado, vinda da sua educação "num ambiente em que a cultura do outro estava sempre presente, com tolerância, com as várias comunidades em harmonia". Cultura estilhaçada na guerra que fez Jocelyne Saab "perder tudo" e ficar "a tentar reconstruir". Neste filme, "reconstruir"o desejo apesar da excisão e o prazer apesar da frigidez a que tal mutilação condena.»
Artigo de Elisabete França publicado hoje no DN
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