25.6.06

A Disfunção Estatística

Recebemos um email da Leonor Areal sugerindo que publicássemos no blog "este contributo sobre um caso que me ficou atravessado":

«Há poucos meses foi publicado em vários jornais o resultado de um estudo sobre sexualidade, que era destacado com os seguintes títulos: "Mais de metade das mulheres portuguesas sofrem de disfunção sexual" (Cadernos de Saúde); "Quase metade das mulheres portuguesas com disfunção sexual não procura ajuda" (Público, 9 Fev.06); "Em cada 100 mulheres oito fingem o orgasmo" (Destak, 9 Fev.06).

O curioso é que este estudo foi realizado pela Sociedade Portuguesa de Andrologia (doenças dos homens) e, no entanto, os jornais deram destaque aos resultados femininos. Se atentarmos no corpo das notícias, lemos que "o trabalho conclui que quando se cruzam os dados entre as disfunções no feminino e no masculino existem diferenças de percepção sobre a sexualidade": se os homens referem que 24% das parceiras tem dificuldade em atingir o orgasmo, e se as mulheres que o confessam são 32%, então, fazendo uma subtracção simples, a percentagem de mulheres que fingem o orgasmo será de 8% - número tão relevante que leva a jornalista do Público destacar que "há portuguesas que fingem o orgasmo sem que os homens disso se apercebam"!

O artigo continua dizendo: "Em matéria masculina, as diferenças continuam, pois elas acham que os homens têm muito mais disfunções sexuais do que estes reconhecem". Até aqui, nada de admirar – por que haveriam os informantes de ser sinceros sobre a sua intimidade? Os dados masculinos são: 28% dos homens admite ter algum problema sexual, divididos por 3 tipos:

- diminuição do desejo sexual: 15,5% segundo os homens, enquanto as mulheres indicam que são 50 % deles;

- disfunção eréctil: 13% segundo os homens, mas elas dizem que são 22%;

- problemas de ejaculação: 13% segundo eles, contra 45% segundo elas.

Os jornais (ou a fonte de informação: o tal estudo?) aqui não faz as contas de subtracção, segundo as quais deveria concluir que a percentagem de homens que mente (não à companheira, mas aos investigadores) é maior que a das mulheres (que mentem aos homens) : 35% - que tem diminuição do desejo, 9% - que tem falta de erecção; 32% - que tem alterações de ejaculação.

Por que não destacaram os jornalistas que metade dos homens tem disfunção sexual e não o quer admitir!?

Mesmo achando este método estatístico deveras suspeito (por exemplo, excluindo os homossexuais), mas aceitando-lhe a lógica, e constatando que os números relativos aos homens são mais impressionantes que os das mulheres, resta-me concluir que:

- é fácil acusar as mulheres de mentirem,

- é tabu referir os problemas que os homens escondem.

Os jornais que publicam as conclusões distorcidas deste estudo (curiosamente, pela mão de jornalistas mulheres) e a Sociedade médica que publica o estudo (aparentemente enviesado desde a fonte) limitam-se a corroborar lugares comuns e a perpetuar preconceitos: o de que as mulheres enganam os homens, o de que as mulheres não têm desejo sexual, o de que elas são as culpadas dos problemas sexuais dos homens.

Senão vejamos as justificações dos "especialistas": o Dr. Nuno Monteiro Pereira (da SPA) explica (no suplemento Cadernos de Saúde, apenso ao jornal Público, creio) que o estudo inclui mulheres na menopausa, que "devido à baixa de hormonas, são mais propensas a estas situações". Em relação aos índices masculinos, o médico considera-os apenas "muito curiosos", justificando: "A avaliação do desejo sexual é muito suspeita porque só o próprio é que sabe se tem ou não desejo" - e omitindo qualquer referência à chamada andropausa – tema tabu.

Aqui a Dra. Maria do Céu Santo explica que se trata de falta de informação das mulheres, que "não sabem que um homem pode estar excitado mesmo sem ter erecção", o que a leva a concluir que "as mulheres precisam de ser educadas e ter um papel mais activo na relação" (!). Segue-se então o rol de banalidades do costume: "a sexualidade feminina é mais complexa" (i.e . mais difícil), "no homem, o acto sexual funciona de maneira mais mecânica", "a mulher tem menos disponibilidade para a actividade sexual que o homem", e deriva-se cientificamente para a questão das hormonas femininas na menopausa, deixando completamente de lado o problema masculino do qual se evita falar, porque (toda a gente o sabe) não se pode nunca falar de impotência em frente dos homens, porque eles se tornam imediatamente inseguros. (O que significa contradizer o chavão do douto investigador segundo o qual "o desejo masculino está dependente de factores físicos".)

Das mulheres pode-se dizer tudo (elas que se amanhem, já estão habituadas). E acrescenta a doutora: "as mulheres pensam que o desejo dos homens está diminuído porque elas são educadas para seduzir e para provocar desejo nos homens. Por mais desejo que eles tenham, nunca é suficiente para nós... Por isso, é que nós temos 50 camisolas, vamos não sei quantas vezes ao cabeleireiro e investimos muito mais... O nosso objectivo é seduzir o nosso parceiro, o que não significa que a intenção seja ter uma relação sexual ou fazer amor".

Que extraordinária conclusão: a missão das mulheres é, mais uma vez, seduzir (isto é, enganar) os homens, e porque elas têm "50 camisolas, e vão não sei quantas vezes ao cabeleireiro" não são supostas ter desejo! Não seria possível, com estas premissas, concluir o inverso? Que extraordinários cientistas estes que se limitam a corroborar os maiores preconceitos, contra todas as evidências dos números em que tão excessivamente se baseiam. Que concepção do mundo tão medieval.»

Leonor Areal - http://doc-log.blogspot.com

Agradecemos à Leonor Areal por nos ter enviado este fantástico texto, que é um prazer publicar aqui no blog. Aproveitamos também para a congratular pelo seu excelente documentário "Doutor Estranho Amor (ou Como Aprendi a Amar o Preservativo e Deixei de me Preocupar)", que acompanha uma brigada de estudantes de medicina no seu trabalho de prevenção de comportamentos sexuais de risco e da SIDA com uma turma do ensino secundário. A não perder!
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2 comentários:

Anabela Rocha disse...

Tudo muito bem apanhado:)
O tratamento jornalístico desse estudo dava, senão uma tese, um artigo jornalístico muito curioso.

Anónimo disse...

Antes de mais, começo por dizer que quem ensinou análise estatística a estes doutos investigadores devia ser enviado de volta para a escola...

Retirar conclusões sobre a veracidade dos inquiridos fazendo subtracções é, no mínimo ridículo, para não dizer pior, já que deixa totalmente de fora a possibilidade de diferentes percepções por parte de homens e mulheres. Concluir que x% de mulheres fingem o orgasmo através de uma subtracção da percepção do orgasmo feminino por parte do homem ao declarado pela mulher é uma idiotice...tanto há homens cuja companheira finge o orgasmo e não o percebem, como homens cuja companheira atinge o orgasmo sem que ele perceba. Da mesma forma, também há homens que não atingem o orgasmo sem que a mulher o perceba e vice-versa.